A Corrente

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Deus me perdoe, mas vão-se gastando as folhas de papel que tenho no bolso. O plátano lá fora envelhece, mas não tanto quanto eu. A beleza da vida é que eu morro e o plátano ficará lá, velando a minha sepultura. A amargura da vida é que eu ainda não morro e o plátano já está lá, velando a minha sepultura. E o que dirá a gaivota que me sobrevoa sobre isto tudo? Não se parece importar muito e o mesmo se passa com a gravidade que continua puxando a maçã para a baixo e com o universo que se continua expandindo, indiferente. Que ingratidão, o universo a expandir-se, a expandir-se e eu aqui, um dia a menos, outro dia a menos e as horas que sempre minguam e nunca aumentam. E agora que é inverno e tenho frio e o plátano já mal tem folhas para me velar, o que será feito de mim? A vida é isto mesmo, um plátano lá fora sem folhas para nos velar, mesmo estando vivos e ele pouco se importando com a sua incompetência na função.

(Os pássaros passam despercebidos, ignorando os dias que se me somem. A erva enche-se de orvalho, impávida perante mim. Os outros riem do outro lado do muro e eu aqui, morrendo-me. )

Pois que se assim é, que sorva a sopa em público, irritando a velha da mesa ao lado, toda ela pérolas e casacos de arminho. Vou sujar a toalha de vinho. Não, melhor, vou assinar em spray vermelho a parede da casa do fascista ao lado. Vermelho, atenção, vermelho. Assim sei que ficarei cá, que se lembrarão da minha presença, que deixei marca, até que a parede seja repintada. E o que somos nós mais do que uma nódoa vermelha, fervente de vida, pintada no muro do fascista. O que somos mais do que umas letrinhas pequeninas na lápide, douradas a imitar riquezas que não houve e como que a dizer: “Deus tenha piedade deste que já se foi, olhe que não era assim tão mau; bem, batia na mulher e vacilava no vinho, mas a vida era dura e sempre foi uma paz de homem, um primor com os netos, umas migalhas de pão aos pombos da praça. Tirando o vinho, era um santo, como há poucos, desculpe-o lá, são fragilidade, bem me percebe; e se não for pedir muito, tenha em consideração as palavrinhas que lhe escrevi, o que não me custaram a pagar. Bem sei que não tenho sido grande mulher. Sim, houve a questão do Zé, mas que podia eu fazer, ele era todo carinhos, atenções. Dava-me rosas e eu pélo-me por rosas, Deus sabe. Não lhe tomo mais tempo, mas tenha em atenção estas palavrinhas em dourado que tanto me custaram a pagar, tanto para mim como para o meu falecido”.

(Que triste vida esta.)

Mas se é assim triste a vida que nos deram a viver, que corramos na calçada estreita, que beijemos em público os lábios de amora do ser pretendido, que, num momento de frenesim, nos atiremos da ponte a baixo, mergulhando no rio, sendo mais peixe que o peixes, deixando as escamas da dor e ao nadar  até à foz, olhando para traz, para o plátano fazendo sombra sobre a lápide, sorrir. Um sorriso de velha desdentada sobre o vento que passa e nunca volta, agreste, frio. Não que o plátano deixe de estar imparcial face ao meu sorriso, mas, parece-me, só a mim, bem vêem, que a vida é mais doce, num sorriso da foz para o plátano sem folhas que nos vela a sepultura. 

*Amália Rodrigues por Eduardo Gageiro

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