Nós somos gente baixinha e trigueirinha, que vive em meia dúzia de
casas atarracadas e caiadas, entre as serras e o mar, e cuja bondade é de letra
inferior e tão rara, tão perfumada e tão fisiológica como o florir dos
jacarandás no calcário bicolor de Lisboa. A fatalidade de um milagre:
Cada português tem dentro de si
algo de profundamente bom e camarada. Humano, útil. Não daquele humanismo
estudado, filosófico e apático, como nas ilustrações do livro da catequese, com
mulheres tão virginais e putas, como as freiras nos conventos de Saramago. Não,
terrivelmente não. Somos afáveis por natureza, pela filigrana da história, sem
inutilidades salazaristas de sopa dos pobres, sem letras maiúsculas no âmago.
Sem o Bem, sem a Bondade. São tão moles estes conceitos, tão dúbios e tão pouco
nutritivos para estômagos mais famintos de pão do que de ideal. Fujamos do Bem
pela estrada da serventia. Fujamos, pela estrada que dá a água de graça, a
cadeira e a conversa farta ao cansado do corpo e do espírito. Esse é o rumo.
Porém, reparem, não temos uma alma superior, que fique claro. Não estou a
colorir de verde e vermelho o paraíso que cá não há, mal de mim se assim me fiz
entender. Não. O que existe é uma total fatalidade. O português não é bom por
filiação, por pensamento; o português é bom, porque lhe está no fado ou no
malhão, ou no vira, ser bom. A pele nasce-lhe trigueira, os olhos escuros,
agradáveis e a atitude próxima, amiga.
Isto é uma coisa muito minha, mas
não acredito nos grandes delineamentos, quando falo do português. Não fomos à
Índia porque somos corajosos; ando há anos a tentar perceber de onde veio essa
tolice. Possivelmente do romantismo oitocentista importado em caixotes da sinuosa
Europa que sempre nos ficou curta nas mangas e grande nas pernas. Nós fomos à Índia
por causal loucura da rede que o destino atirou ao mar.
(Oh Zé, metemo-nos num barco e
vamos.
Arranja-se meia dúzia de pipas e
vamos.)
Reparem, um alemão acharia isto perfeitamente idiota.
E é. O caminho era mais longo, o mar mais incerto que a terra e quem pensaria
que chegaria seja o que for ao porto de onde partiu, entre tempestades e Deuses
assanhados, uma carrada de homens metidos numa jangada mal servida de protecção
e rumo. Que mente pensante se mete em tempos de dificuldade a comercializar com
o desconhecido, onde não se sabe onde fica, o que tem e se o quer vender. Correu
bem, positivamente. Mas, reforço, o meu ponto aqui é o da fatalidade. A
fatalidade do trabalho. O português é um homem de trabalho, como há poucos, mas
do trabalho mal organizado, sem orientação, sem a ideia. Quem se põe a cavar a
rocha do Douro e espera ter aquela pureza de vinho, aquele aroma, aquele
encanto? Um doido, um doido que se deita ao mar e lhe saca as especiarias
todas, os ouros todos. Se me permitem, para acabar o texto que já vai longo, o
português é um tipo de sorte, a sorte que protege o doido, o Deus que protege o
doido, que é desgraçado e não sabe para onde vai. O Deus que se revê no doido
ao criar este mundo.
*Jacarandás na Primavera lisboeta
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